sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Ser poeta


Ser poeta é ser mais alto,
é ser maior
Do que os homens!
Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como
quem seja
Rei do Reino de Áquem e
de Além Dor!

É ter de mil desejos o
esplendor
E não saber sequer que
se deseja!
É ter cá dentro um astro
que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de
Infinito!
Por elmo, as manhãs de
oiro e de cetim...
É condensar o mundo
num só grito!

E é amar-te, assim,
perdidamente...
É seres alma, e sangue, e
vida em mim
E dizê-lo cantando a toda
a gente!

Florbela Espanca

Maceo Parker - Shake everything you've go

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Nem sempre sou igual


XXIX

Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
mas sou sempre eu, assente sobre os meus pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade da alma...
Alberto Caeiro
morcheeba - world looking in

Passamos pelas coisas sem as ver


Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

EUGÉNIO DE ANDRADE


Morcheeba - Blindfold
http://www.youtube.com/watch?v=6tQB3z4Wn-8&feature=related

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Não sou nada.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos
do mundo.

Fernando Pessoa

Satisfaction (I Can't Get Me No) - Devo
http://www.youtube.com/watch?v=n8fORGIhbAc

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Para se grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
Ricardo Reis


People Have The Power by The Patti Smith Group 1988

http://www.youtube.com/watch?v=EgXdJqWc1U4

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Ausência


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade


Tuxedomoon - "In a manner of speaking"


segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Lua Adversa



Lua adversa

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário que
um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles

Nouvelle vague - dance with me"

sábado, 25 de outubro de 2008

Pus o meu sonho num navio



Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

CECÍLIA MEIRELES

Manu Dibango - Soul Makossa
http://www.youtube.com/watch?v=zRUehk0WHCk



sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Entre a sombra


Entre a sombra e a noite há um submisso instante
de preparação.
Aberto espaço onde aves não cantam,
imaculado, instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!

— E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.

Onde nada se move, uma estrela suspensa.

E tão inutilmente despedaço o encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
— o intocável, único espaço.

Maria Alberta Menéres


amon tobin - 4 ton mantis


Venturosa de sonhar-te


Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

–Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para lever-te comigo
é suspiro e pensamento.

–Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!

Cecília Meireles

Amon Tobin - Keep Your Distance
http://www.youtube.com/watch?v=Bk8W3ysnB7M

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O Navio de Espelhos


O NAVIO DE ESPELHOS - MÁRIO CEZARINY

O navio de espelhos
não navega cavalga
Seu mar é a florestaque
lhe serve de nível
Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos
Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele
Os armadores não amam
a sua rota clara
(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)
Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga
O seu porão traz nada
nada leva à partida
Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta
(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)
Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto
A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto
Quando um se revolta
há dez mil insurrectos
(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)
E quando um deles ala
o corpo sobre os mastro
se escuta o mar do fundo
Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

OS POETAS - NAVIO DE ESPELHOS

http://www.youtube.com/watch?v=gbT8l8YyORo

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O Guardador de Rebanhos - II

II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia, tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

ALBERTO CAEIRO

Aimee Mann - How Am I Different - Live Fleadh
http://www.youtube.com/watch?v=iW7gUnN7yxo

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Poema


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cezariny

LAMB - My Angel Gabriel

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Visto a Esta Luz!!!


Visto a esta luz és um porto de mar
como reverberos de ondas onde havia mãos
rebocadores na brancura dos braços

Constroem-te uma ponte
que deverá cingir-te os rins para sempre

O que há horrível no teu corpo diurno
é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar

Quero-te sempre como nã querer-te?
mas esta luz de sinopla nas calças!
este interposto objecto
e o seu leve peso de eternidade

MÁRIO CESARINY
aa
DEAD CAN DANCE - Rakim